segunda-feira, 21 de novembro de 2016

para ela, um domingo qualquer


Ela não tem certeza se está ou não acordada, mas no escuro dos pensamentos lembra quem é. E diante de sua imagem refletida no espelho pede que o próximo dia, seja lá qual for o diabo do dia, seja menos merda que o anterior. Menos bosta que o anterior e tantos outros antes deste.

Estava, na verdade, acordando. Sua prece no espelho foi fruto daquele momento que você está no limbo estranho entre os braços de Morpheu e o calvário do dia a dia. Abre os olhos e não reconhece onde está. Olha ao redor tentando acordar e reconhecer, mas a mobília cinza não lhe é nada familiar. Seria um clichê se ela olhasse para o lado, visse um homem estranho qualquer, e sentisse um gosto de ressaca na boca. Mas nada disso, nem homem, nem ressaca. Sozinha e perdida.

Da calcinha preta, única peça que vestia, lembrava bem. Sim, ela era ela mesma, não tinha ido parar por engano no corpo de outrem. Janela. Muito sol. Até conseguia ver uma pontinha da praia ali daquela janela alta. Eu não moro tão alto, pensou lerdamente. Mas a coisa toda litorânea não lhe era de todo estranha. Fortaleza Acho que sim. Pronto. Todo o glamour e excitação da mente sem lembranças desaparece instantaneamente. Ela é inteira e decepcionantemente ela mesma novamente. Enquanto lembra detalhadamente de como sua vida sem sentido a fez chegar até aquele quarto, o telefone toca.

Ele já estava na recepção do hotel, disse o recepcionista. Agora até do rosto redondo e oleoso do recepcionista ela lembrava. Arruma uma bolsa com coisas de praia, devem ser necessárias para o dia que seria incrível, ele tinha prometido isso. Bom dia, tudo bem, tudo. Vamos, vamos.

Já no carro em movimento ele diz que o melhor lugar para irmos justificar meu voto é numa escola x. Puta que pariu, é domingo, é segundo turno das eleições, ela está fora da sua cidade. Fila, mulher estranha com cheiro de flor de cemitério, calor da porra. Não pode justificar o voto só com a identidade, tem que ter o título de eleitor. Ótimo. Segue o dia.

A tal praia é longe, mas vai valer a pena, garante o garoto no volante. De longe ela enxerga uns tobogãs enormes e milhares de cabeças em movimento. Dezenas de famílias com frango na marmita, seguramente. Secretamente ela agradece por não estar lá. E o carro segue. E segue a direção do maldito parque aquático. Ela sofre em silêncio. O garoto para o carro muito perto, tão perto que dá pra ouvir a gritaria das varizentas. Ela não consegue evitar e ele acaba notando seu olhar mortificado na direção dos portões de entrada. Ele gargalha e diz que não é para lá que estão indo. Podia ter falado antes.

Do porta malas o empolgado tira uma pipa. Sim, uma pipa. Paina, papel, rabiola. Ela só tem lembranças péssimas com pipas. Nunca soube o que as pessoas vêem de graça naquele ritual que até perigoso é. Caminham um pouco até a praia. Vazia, sem gente. Nem uma barraca para o drink. Nada. Uma ventania do caralho, dessas que levanta a areia, que atinge a pele e dói. Por um instante ela pensa que teria sido melhor entrar no parque.

Eles sentam e logo o garoto se envolve com a tal pipa. Isso não vai dar certo nesse vendaval, pensa ela. De alguma maneira deve ter pensado alto, pois logo depois ele diz em voz audível que quanto mais vento melhor.

E tinha razão. Sem muito esforço aquele objeto coloridinho sobe em direção ao imenso e distante azul, rapidamente virando parte dele. Um pentágono em movimento no meio do nada, gerenciado por aquele garoto homem bonito, completamente entregue ao ato de pipear. Como que saído de um estranho filme de amor, ele se vira na direção dela, e tudo faz sentido. Ela se dá conta de que sim, se trata de um dia de inegável beleza. Se enche de um sentimento afetivo bem lugar-comum, e tem vontade que aquele garoto fique na vida dela para sempre. Logo depois disso realiza que no fim das contas a vida é muito mais feita de momentos de cegueira do que de beleza. Mas não quer pensar nisso agora. Vai na direção do garoto delícia, beija ele e pega o brinquedo voador de suas mãos. E dia que segue.

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