segunda-feira, 21 de novembro de 2016

para ela, um domingo qualquer


Ela não tem certeza se está ou não acordada, mas no escuro dos pensamentos lembra quem é. E diante de sua imagem refletida no espelho pede que o próximo dia, seja lá qual for o diabo do dia, seja menos merda que o anterior. Menos bosta que o anterior e tantos outros antes deste.

Estava, na verdade, acordando. Sua prece no espelho foi fruto daquele momento que você está no limbo estranho entre os braços de Morpheu e o calvário do dia a dia. Abre os olhos e não reconhece onde está. Olha ao redor tentando acordar e reconhecer, mas a mobília cinza não lhe é nada familiar. Seria um clichê se ela olhasse para o lado, visse um homem estranho qualquer, e sentisse um gosto de ressaca na boca. Mas nada disso, nem homem, nem ressaca. Sozinha e perdida.

Da calcinha preta, única peça que vestia, lembrava bem. Sim, ela era ela mesma, não tinha ido parar por engano no corpo de outrem. Janela. Muito sol. Até conseguia ver uma pontinha da praia ali daquela janela alta. Eu não moro tão alto, pensou lerdamente. Mas a coisa toda litorânea não lhe era de todo estranha. Fortaleza Acho que sim. Pronto. Todo o glamour e excitação da mente sem lembranças desaparece instantaneamente. Ela é inteira e decepcionantemente ela mesma novamente. Enquanto lembra detalhadamente de como sua vida sem sentido a fez chegar até aquele quarto, o telefone toca.

Ele já estava na recepção do hotel, disse o recepcionista. Agora até do rosto redondo e oleoso do recepcionista ela lembrava. Arruma uma bolsa com coisas de praia, devem ser necessárias para o dia que seria incrível, ele tinha prometido isso. Bom dia, tudo bem, tudo. Vamos, vamos.

Já no carro em movimento ele diz que o melhor lugar para irmos justificar meu voto é numa escola x. Puta que pariu, é domingo, é segundo turno das eleições, ela está fora da sua cidade. Fila, mulher estranha com cheiro de flor de cemitério, calor da porra. Não pode justificar o voto só com a identidade, tem que ter o título de eleitor. Ótimo. Segue o dia.

A tal praia é longe, mas vai valer a pena, garante o garoto no volante. De longe ela enxerga uns tobogãs enormes e milhares de cabeças em movimento. Dezenas de famílias com frango na marmita, seguramente. Secretamente ela agradece por não estar lá. E o carro segue. E segue a direção do maldito parque aquático. Ela sofre em silêncio. O garoto para o carro muito perto, tão perto que dá pra ouvir a gritaria das varizentas. Ela não consegue evitar e ele acaba notando seu olhar mortificado na direção dos portões de entrada. Ele gargalha e diz que não é para lá que estão indo. Podia ter falado antes.

Do porta malas o empolgado tira uma pipa. Sim, uma pipa. Paina, papel, rabiola. Ela só tem lembranças péssimas com pipas. Nunca soube o que as pessoas vêem de graça naquele ritual que até perigoso é. Caminham um pouco até a praia. Vazia, sem gente. Nem uma barraca para o drink. Nada. Uma ventania do caralho, dessas que levanta a areia, que atinge a pele e dói. Por um instante ela pensa que teria sido melhor entrar no parque.

Eles sentam e logo o garoto se envolve com a tal pipa. Isso não vai dar certo nesse vendaval, pensa ela. De alguma maneira deve ter pensado alto, pois logo depois ele diz em voz audível que quanto mais vento melhor.

E tinha razão. Sem muito esforço aquele objeto coloridinho sobe em direção ao imenso e distante azul, rapidamente virando parte dele. Um pentágono em movimento no meio do nada, gerenciado por aquele garoto homem bonito, completamente entregue ao ato de pipear. Como que saído de um estranho filme de amor, ele se vira na direção dela, e tudo faz sentido. Ela se dá conta de que sim, se trata de um dia de inegável beleza. Se enche de um sentimento afetivo bem lugar-comum, e tem vontade que aquele garoto fique na vida dela para sempre. Logo depois disso realiza que no fim das contas a vida é muito mais feita de momentos de cegueira do que de beleza. Mas não quer pensar nisso agora. Vai na direção do garoto delícia, beija ele e pega o brinquedo voador de suas mãos. E dia que segue.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O dia perfeito de Juliano. (uma homenagem a quem INSISTE em denunciar minhas fotos)


Hoje acordei perto das 6 da manhã, como de costume. Deus ajuda quem cedo madruga. Comi uma fruta, umas castanhas e um pouco de leite desnatado. "Nada de glúten, Juliano", lembrei. Afinal você é o que você come. Tomei um banho rápido e gelado, economizando energia e água, pois o planeta está doente e precisa de nós. Caminhei 6 km até o trabalho, não uso carro, mais uma vez cuidando do planeta. Sou um cidadão de bem, você pode notar.

No caminho desviei de dois mendigos (meu direito de ir e vir sem sendo ameaçado) e antes de chegar no trampo rolou uma selfie no chafariz. O dia tah lindo, merece ser compartilhado com meus facebrothers. Cheguei um pouco cedo no escritório, com tempo para me atualizar. Nos noticiários as coisas andam melhorando. Pelo visto os comunistas estão perdendo terreno. Fora PT.

Depois de passar a manhã trabalhando em algo que não sei o que é nem para que serve, fui comer meu almoço vegano com meu amigo da academia. Somos os únicos no trabalho a cuidar da saúde. Gratidão.

Voltei ao trabalho, minha namorada ligou enquanto eu falava com a peguete no whats. Mas ó, nenhuma pode reclamar. Cuido direitinho das duas. Deus sabe. No fim da tarde consegui um tempo sozinho na sala e pude ver meu pornôzinho sagrado. Gosto mesmo é de putaria com travesti, homem, mulher, tudo misturado. Muito peito, muito pau. Só no vídeo mesmo.

Ainda antes de sair do escritório um tempo para atualizar as redes. Uma hora boa pra ver se a galera não está querendo esculhambar o facebook com depravação. Ó lá, não deu outra: mais uma vez aquele viado do Ricardo Marinelli postando foto dele pelado. Eu denuncio, com prazer, e toda vez que for necessário. Fica com essa viadagem, querendo expor a perversão dele pra todo mundo. Quer ficar pelado fica em casa, não no meu facebook. Eu sou cidadão de bem.

Volto meus 6km caminhando, cansado pakaralho. Tomo um banho e ainda tem culto hoje. Fui ao culto com a namorada e mal consegui ficar com o olho aberto, mas estava lá. Vou pra casa, com um mal humor da porra, minha namorada fica falando um monte de coisas mas não ouço nada, só uma voz irritante. Pra ela para balanço a cabeça, concordado, sou um cidadão de bem.


Deito, e antes de dormir as imagens dos filmes do fim da tarde voltam a minha cabeça e por um instante tenho vontade de me masturbar, mas deixo pra lá. Durmo, pra completar mais um dia perfeito.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Homo sapiens sapiens bichoniens


Também conhecido como bicha loka, veado, bambi, baitola, morde fronha, gayzão, ré no kibe — entre outros nomes populares no Brasil e no mundo — o homo sapiens sapiens bichoniens é um mamífero famoso por suas habilidades para escolher roupas e por seus desejos quase sempre coloridos. 

Trata-se de espécie dócil que vem respondendo bem à vida em cativeiro que lhe tem sido imposta na sociedade branca, ocidental, masculinista e heteronormativa contemporânea. Exótico por natureza, adora ficar em exposição e também precisa ouvir periodicamente uma música da Madonna, sem a qual não sobrevive muito tempo. 

Uma vez por ano a sociedade lhe dá o direito de expressar sua orientação sexual publicamente, por ocasião da parada gay, onde todas as pessoas amplamente generosas tiram muitas fotos ao seu lado, afinal toda criatura digna de circo dos horrores merece uma fotografia de lembrança. Para tanto recomenda-se uma distância preventiva, já que as causas de suas deformidades ainda vem sendo estudadas pela ciência.

Você já sabe, mas não custa lembrar: por favor, não alimente os animais.

Atenciosamente, 
a direção.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

What a feeling? (Princess version)


Primeiro, quando não há mais nada, apenas um sonho lento brilhando...
Um sonho que o seu medo parece esconder bem lá no fundo de sua mente.

Completamente só, eu chorei lágrimas silenciosas, cheias de orgulho, de cansaço e raiva.
Nesse mundo feito de aço, feito de pedra e de falta de empatia.

Bem, não é mentira que quando eu ouço a música, fecho meus olhos, sinto o ritmo, algo acontece.
Me arrumo, me integro, e controlo um pedaço do meu coração.

Neste momento, que puta sensação!
Sem se perguntar muito, você se mantem acreditando que pode ter tudo: agora estou dançando pela minha vida.

Tome sua paixão e faça isso acontecer.
Metáforas e imagens ganham vida, e com elas você pode dançar sua vida inteira.

Eu sou música agora, e as imagens ganham vida quando as chamo.
Retome sua paixão e faça isso acontecer.

bocudos


















Aqueles dois, quando nasceram, eram bebês com cara de joelho, assim como todos os outros. Mas muito rapidamente os joelhos deram lugar a caras bem mais específicas.

O primeiro, logo muito criança, tomou um susto quando depois de uma briga uma faca esquisita apareceu um pouco acima da barriga. Sim uma faca saiu de dentro dele, na altura do peito. E depois dela muitas outras apareceram. E ficaram ali, confortável e permanentemente instaladas com suas pontas afiadas intimidando o mundo.

O outro abandonou a cara de joelho ainda mais cedo. Quando percebeu que acompanhava fisicamente o balanço dos patinhos pendurados no móbile acima do berço percebeu também que era só assim que conseguia viver, espiralando.

Simples assim. Complexo assim. Eles nunca souberam direito o que eram, mas quando se perceberam juntos, entenderam alguma coisa. Ao fugir espiralando das facas espalhadas no corpo dele, segundo percebeu que o medo não tinha muito sentido. E ao ver o segundo se movendo tão rápida ágil e amplamente, primeiro se sentiu deslumbrado com tanta possibilidade de mover que ele não tinha. 

Logo perceberam ainda outra presença: Macaco. Na relação com esse outro, os dois aprenderam que são assim: vivem as dores e as delícias de serem esquisitos e específicos.

Bocudos nasceu no colchão, onde vive desde então. Ainda que não tenha uma perna, não fale e nem saia do lugar, Macaco é quem ajuda Bocudos nas tarefas de fazer o tempo, a música e a dança estarem sempre indo.

No colchão a música e a dança nunca acabam, e mesmo com as facas que tem espalhadas por todo lado, o corpo de Bocudos dança muito bem. Aliás ele só se lembra delas, das facas, quando a dança fica mais fora de controle, culpa das músicas mais agitadas que vem de algum lugar que ele não sabe onde.

Na verdade ele gosta delas (das facas) e fica o tempo todo esperando por um novo acontecimento especial em sua vida, quando com certeza ganha uma nova faca ou uma nova boca, que brota delicada e decididamente de dentro pra fora. É o jeitinho dele pra registrar as coisas.

As bocas aparecem com mais frequência que as facas, na verdade. São tantas que ele já perdeu a conta e nem lembra onde estão todas. As vezes, inclusive, muitas delas ficam falando ao mesmo tempo. Nessas horas Bocudos se concentra mais na música, na dança e no macaco, senão fica muito confuso.

Ele lembra bem dos momentos em que cada uma das facas apareceu, menos de quando e como brotou a grande que fica no peito. Dessa só lembra dos dias em que ela dói. Sempre se perguntou o motivo da dor, pois a ponta das suas facas está sempre pra fora do corpo. O que um cabo tem pra fazer doer? Por causa dessa dorzinha essa era a única faca que Bocudos não usava para cortar suas bananas.

Um dia Bocudos tentou abraçar Macaco e numa consequência ridiculamente previsível, as antigas caras de joelho acabaram esfaqueando o amigo peludo. Fim.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

eu olho pra você


Eu olho para você e você me diz que sou desnecessariamente agressivo.

Que sou exagerado. Que o amor que sinto não é natural. Que meu corpo, tão fabricado quanto o seu, é uma aberração. Diz que vou contra as leis da natureza, contra as leis de um livro que justifica seu desprezo. 

Eu olho para você, e você se sente superior a mim por causa da cor da sua pele, ou por causa das pessoas que pensa que eu deveria amar.

Eu olho para você, você me olha de volta e ri. Ri da minha língua e dos meus costumes, violenta meu corpo e minha forma de existir.

Eu olho para você, e você banaliza meu trabalho, me chama de vagabundo, me nega direitos essenciais, me oferecendo as sobras: para você eu posso até existir, desde que destituído de dignidade.

Eu olho para você, e tudo isso que você faz e pensa sobre mim dói. E tem momentos que dói muito fundo. Tão fundo, que as vezes vira a semente de uma arma. Sim. Em mim a dor vira semente de faca. Elas germinam, e crescem, rompem minha pele e me afastam cada vez mais de você.

Eu olho pra você, e mais uma vez você me diz que sou desnecessariamente agressivo. E em certa medida você tem razão.

No jogo idiota da violência, minha estratégia de defesa as vezes vira tática de ataque. Mas eu não quero isso.

Eu estou disposto a desistir das minhas armas, mas em troca preciso que você jogue fora também suas piadas e comentários jocosos.

Eu estou disposto a jogar fora minhas facas, mas preciso que o abraço que você me dá, dizendo que me respeita, seja sincero.

Eu estou disposto a olhar para você e enxergar mais do que a imagem normatizada, que sua religião, mas preciso que você faça o mesmo por mim.


Eu estou disposto a viver nesse mundo junto com você, de verdade. E em algum lugar, ainda que muito profundo, quero acreditar que você também está. 

Dircélia e Rúbia


Dircélia e Rúbia já completavam quinze anos (ou seriam dezesseis?) trabalhando juntas. “Trabalhar em secretaria é muito mais difícil do que as pessoas pensam”, esbravejava Dircélia umas vinte vezes por dia, e Rúbia sempre concordava movimentando a cabeça. Alternando fases de amor incondicional, e ódio sem precedentes, as duas só nunca abriam mão de uma coisa, fundamental para o trabalho correr bem: é preciso manter as fofocas e maledicências em dia. Se puder ser sobre a vida dos outros funcionários e professores do departamento, melhor.

- Ontem atendi aquele esquisito. Ficou um tempão aqui fazendo perguntas, queria saber de todo o funcionamento da secretaria, só faltou perguntar a cor da minha calcinha, o falastrão.

- O professor novo, Dirce? Coitado, está tentando se adaptar.

- Que nada, menina. É bisbilhoteiro mesmo, do tipo chato. Semana passada estava aí no balcão, nem lembro com quem, só lembro dele falando bem orgulhoso “eu sou ateu!”. Que tipo de gente sente orgulho de ser ateu? Só pode ser má pessoa. Eu detesto ateus. Ateus e comunistas. Tinha que mandar tudo para Cuba! Bom... A Astrid veio toda feliz, falando que ele é “artista”, que já viajou sei lá para quantos lugares apresentado Dança. Grande coisa.

- Ah, está explicado, então.

- Explicado o que Rúbia?

- Explicado... ora. Todo artista é veado mesmo, não tem jeito. Bem que eu achei.

- Minha filha, ali é uma bichona, não é veado. Como assim “bem que eu achei”? Ele tem unhas duas vezes maiores que as minhas, e que cada semana estão pintadas de uma cor, fora a cara toda rebocada de maquiagem todo dia e a voz esganiçada. O que você queria para ter certeza? Que ele viesse de salto alto trabalhar, e entrasse pela porta cantando “I will survive”?

- Credo Dirce, eu só não gosto de ser precipitada, só isso.

- Você é lenta, isso sim que você é. Tem até gente que chama ele de Princesa. Não me pergunte o motivo, mas outro dia vi a Carmen gritando “Espera, Princesa Ricardo!”. E ele esperou. Esperou sorrindo, aprovando a forma que foi anunciado. Quer dizer, está tudo perdido mesmo. Ou é Príncipe Ricardo, Ou Princesa Ricarda. Simples assim. Fora que com aquela cara de nordestino, com certeza não tem nada de real na linhagem familiar dele.

- Pensando bem teve um dia que ele estava falando comigo e parecia que eu falava com uma mulher. Depois parecia homem. Sei lá. - A observação confusa de Núbia inaugurou um raro momento de silêncio. Talvez uma reflexão sobre a dubiedade que a figura de Princesa as vezes inspira.

Mal sabiam as duas que Princesa Ricardo é um nome que representa mais de quinze anos de trajetória artística, acadêmica e pessoal de Ricardo Marinelli Martins (esse era o nome que constava nas listas que elas tinham acesso na secretaria). Princesa Ricardo foi uma das formas que Ricardo encontrou para já na sua apresentação, questionar os limites entre homem e mulher, entre feminino e masculino. Sei disso por conhecê-lo há alguns anos, bem antes de ele se tornar colega de departamento. Fomos apresentados em uma mesa de bar, durante a festa de aniversário de uma amiga em comum. Ricardo Marinelli, como me foi apresentado na ocasião, parecia uma máquina de fazer piada, dar risada e tomar vodca. Movia-se na conversa com desenvoltura e extroversão notáveis, o que muitas vezes o tornava irritante e um pouco chato. Às vezes as pessoas nitidamente queriam um pouco de espaço. Mas Princesa é assim: para o bem para o mal é intenso, e as vezes é difícil controlar intensidades, não é? Com o tempo fui descobrindo que essa extroversão e vontade de comunicar ininterruptas, na verdade são mecanismos de defesa de uma pessoa que está sempre tendo que reaprender a não se importar com o que os outros dizem. Mas isso Dircélia e Rúbia nunca veriam em Princesa.

- E ele que não me venha dar encima do Jurandir. Bicha é um bicho sacana, fica se jogando em tudo quanto é homem. O Jurandir é meu!

- Dirce!!!!

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

que pena é essa que vale alguma coisa?



Fazia tempo que não via alguém fazer uma entrada com tanta gritaria. Do canto onde me encontrava, longe da porta de entrada, todo o texto meticulosa e performaticamente proclamado para o nada se fazia ouvir nitidamente. Não entendi muita coisa, mas ouvi tudo. Todos ouviram. E pelas caras que vi pareciam se perguntar a mesma coisa ao olhar para a figura recém-chegada: mas que merda é isso?

...

Você. É você mesmo, caralho. Que nunca esteve em lugar algum, mas nunca saiu do meu lado. Este estranho e incoerente gracejo é para você. E não se faça de sonse. Faz tempo que convivo relativamente bem com sua presença ausente, com o fato de ter um fantasma preso a minha sombra, com o enorme peso da sua sombra apertando a minha. Eu dou conta desse recado que parece ter sido escrito diretamente para euzinha. Bicha fraca nasce heterossexual, meu bem.

Olha aqui pra mim. Ouve, porra.  Todo este conjunto, sua falta gritando e os recadinhos em todo outdoor, tudo parece (ou parecia) mais um artifício da incontrolável embaladora sádica de modelos pré-fabricados de corpos existências. A desgraçada produção em série de coisacorpos medicados, educados, disciplinados, casados, realizados, todos-os-ados. Eu fugindo e você querendo me pegar.

Mas o jogo parece estar se invertendo, e agora minha resistência a chamar por você parece ser uma das coisas que me normaliza. Sim, eu rio de mim mesma o quanto posso.

Uma resistência não em qualquer normalidade, mas em uma bem específica e pessoal que ajudei a inventar.  Ficou confuse? Pois então venha. Venha do jeito que for mais conveniente pra você, mostrengue. Venha vestindo a roupa que mais for justa. Justa com você. Prometo que vou fazer valer a pena. Aliás, você sabe o motivo de a gente dizer que vai “valer a pena”? Que pena é essa que vale alguma coisa em algum lugar?

sábado, 12 de novembro de 2016

Fulano e Sicrana


— Malditas sejam vocês, calorias. Suas entidades monstruosas e quase concretas, que caminham enlouquecidas pelo universo da minha cama e por todos os outros universos. Saiam daqui, pestes que não me dão descanso!

De onde eu o observava, devidamente escondida na sombra, à sombra dos móveis velhos, pareceu que a voz de Fulano estava menos animada nesta manhã. Talvez por isso passe mais tempo na cama e eu finalmente tenha minha grande chance. O que não desanima nunca é a vontade de resmungar coisas sem muito sentido. Fulano é destes que falam sozinhos. Ele diz que fala consigo mesmo, o que em sua visão é diametralmente oposto a falar sozinho. Vai saber. Às vezes acho que entendo a diferença, às vezes ele só parece um velho de trinta anos. Eis que sem aviso prévio Fulano tira os pés da coberta, apoia-os no chão e quase toca em mim. Quase mesmo. Preciso ser mais cautelosa. Eis que o dono do mais lindo nariz das redondezas levanta e vai todo tremendo em direção ao espelho, para perder. Perder. Perder. Perder!

 — Oi, espelho. Você está bem? Feliz em me ver, não é? Eu? Eu estou sempre boa. Gostosa. Fabulosa. Maravilhosa. Esplendorosa. Voluptuosa. Você sabe que meus únicos problemas são as calorias, estes carrapatos destruidores de autoestima. Calorias me assombram, meu bem. Eu entro nos lugares e fico olhando o chão para não tropeçar em umas. Porque sim... se tem um bando de gente que perde calorias por aí, alguém vai achar. Ontem na fila do banco ouvi aquela imensa falando toda orgulhosa que perdeu não sei quantas. Então sai daqui, molambenta, sai de perto por que eu não quero achar nada.

— Você está falando comigo, Fu?

Isso foi Sicrana, gritando da cozinha. E sim, o nariz por quem estou desesperada faz parte do rosto de um homem gay. Muito gay. Mas nariz não tem orientação sexual, então não venham me recriminar. Além do que, Fulano e Sicrana, à revelia do desejo de suas famílias, mantêm entre eles uma relação duvidosa que inclui sexo ocasional e troca de dicas de maquiagem na mesma proporção. Sicrana vem de uma família de Referentes Pessoais Genéricos muito tradicionais, uma linhagem nobre de Sicranos e Sicranas puristas. Evidentemente todos detestam a imprecisão da relação que ela tem com Fulano. Eu sei de tudo que acontece nessa casa.

— Não, guria. Falava com um dos vários Fulanos, que compõe este Fulano, que agora vos fala.

E ele ri um pouco da resposta, o sorriso faz o narizinho franzir. Vi só pelo espelho. Pelo espelho também vejo que um momento apoteótico se aproxima: ele vai cortar os pelos do nariz com aquela tesourinha. Corro e me posiciono melhor para o espetáculo, atravesso na pontinha dos pés o tapete e por detrás dos pés da cômoda entro no camarote, de onde posso vê-lo limpar a cavidade nasal com absoluta clareza.

— Esses Fulanos todos estão atrasados, meu bem. Vem tomar café logo, antes que eu saia sem vocês. Ou pior, antes que eu coma seu sonho.

— Meu sonho não! Tudo menos o meu sonho, mocoronga do meu coração.

E o enorme sonho de doce de leite, direto da confeitaria das famílias tira Fulano do espelho. Vai em direção ao doce como o viciado corre na direção da heroína. Ele nunca falou nada parecido, mas eu, com minha sabedoria que data da época dos dinossauros, sei: ele sente tanto prazer comendo sonhos porque eles funcionam como placebo, estratagema para substituir os sonhos de verdade que ele desistiu de sonhar. Por isso que o dono deste narizinho come a bomba de gordura e carboidrato sempre que pode.

— Crana, a gente se conhece desde muito tempo, tanto que a gente nem conta mais para não parecermos velhos, então por favor ajuda essa pessoa que está na sua frente precisando de uma luz: é sério. Você acha que a caloria vai pra onde? Quando você perde uma caneta, por exemplo. Se procurar acha, não é? Na verdade é mais fácil a caneta desaparecer completamente e ir para o vale das canetas perdidas, que as calorias... Elas ficam por aí, empoleiradas, só esperando o próximo culote passar. E aí, nhac! Na ativa de novo. É sim! O que eu estou perdendo aqui, ó, nessa dancinha, vai acabar tudo neste teu braço flácido aí, amor. Fala alguma coisa, mulher!

— Primeiro, larga de ser dramático. É muita cena para pouca serventia. E é claro que eu tenho uma opinião a respeito, você fala sobre estas desgraçadas calorias todo dia, mais de uma vez por dia. Maldita hora que eu te levei naquela nutricionista com pique de animadora de torcida.

— Pois é, falando nela: ela quer que eu vá para a academia fazer exercícios. Academia? Como assim? É um bando de gente junta no mesmo lugar desesperada pra perder caloria. Você olha para o lado, e só pela cara que a pessoa está fazendo, dá para ver as calorias saltando na nossa direção. Vira o pescoço, tem um cara quase se enforcando com um monte de pesos, tudo para ficar parecendo aquele bonequinho de plástico com o corpo todo desproporcional, enfim, fazendo o quê: perdendo calorias para tudo quanto é lado. Gente, alguém acaba achando essas calorias! É por isso que as pessoas vão para a academia, malham, malham e continuam gordas. Perdem as suas, mas acham as dos outros. Venha trocar suas calorias com a gente! Isso sim seria um slogan coerente para divulgar academias.

 A essa altura eu já estava na cozinha com eles, aproveitando também meu café da manhã, bem abusada, bem corajosa. Minhas colegas se recolhem durante o dia. Puro medo, já que nem dormir nós conseguimos. Eu não tenho medo do dia, nem desses dois esquisitos. Além do que, tem esse nariz, esse sim um verdadeiro sonho de consumo. Eu hei de conseguir.

— Caloria não se perde, se gasta, Fulano. Já te falei.

— Ah, gasta. Ridícula. Quando gasta dinheiro você faz o quê? Você dá o seu dinheiro para outra pessoa. Para quem você dá as suas calorias, ahn? Tem umas pessoas que, muito convencidas, juram queimar as ditas. Queima nada. Cadê a fogueira? Isqueiro? Argentino com malabares de querosene? Tem? Queima coisa nenhuma. Caloria a gente perde. E essas criaturas de satanás ficam lá esperando minha bunda passar.

A obsessão com as calorias é só uma das diversas pequenas neuroses diárias de Fulano. Logo começaria o momento “como o ar é sujo”, depois “azul é uma cor horrível, não é?”, e assim segue até voltar para as calorias. Um sujeitinho difícil, chato, talvez doente. Difícil, mas, nunca canso de dizer, dono do nariz mais maravilhoso que eu já vi. Há meses que fico cercando esse nariz, esperando por uma oportunidade de chafurdar naquele oásis. Posso sentir daqui o aroma refinado que emana daquelas suculentas secreções. Mas sei esperar. Minha hora vai chegar. Eu não sou dessas desesperadas que vivem cada minuto como se fosse o último. Esperar é uma arte. Minha espécie não teria durado mais de duzentos milhões de anos se tivesse pressa. Além disso, eu tenho muitos outros proj

— Ui! Credo, que nojo! Meu pai amado.

— O que foi, Sicrana, olhou sua barriga no espelho, foi?

— Pisei numa barata sem querer! Coitada, estraçalhou-se.

— Uma a menos no mundo, amor. Vamos logo para esta maldita reunião de família. Espero que o Beltrano não apareça, aquele falastrão.