sábado, 12 de novembro de 2016

Fulano e Sicrana


— Malditas sejam vocês, calorias. Suas entidades monstruosas e quase concretas, que caminham enlouquecidas pelo universo da minha cama e por todos os outros universos. Saiam daqui, pestes que não me dão descanso!

De onde eu o observava, devidamente escondida na sombra, à sombra dos móveis velhos, pareceu que a voz de Fulano estava menos animada nesta manhã. Talvez por isso passe mais tempo na cama e eu finalmente tenha minha grande chance. O que não desanima nunca é a vontade de resmungar coisas sem muito sentido. Fulano é destes que falam sozinhos. Ele diz que fala consigo mesmo, o que em sua visão é diametralmente oposto a falar sozinho. Vai saber. Às vezes acho que entendo a diferença, às vezes ele só parece um velho de trinta anos. Eis que sem aviso prévio Fulano tira os pés da coberta, apoia-os no chão e quase toca em mim. Quase mesmo. Preciso ser mais cautelosa. Eis que o dono do mais lindo nariz das redondezas levanta e vai todo tremendo em direção ao espelho, para perder. Perder. Perder. Perder!

 — Oi, espelho. Você está bem? Feliz em me ver, não é? Eu? Eu estou sempre boa. Gostosa. Fabulosa. Maravilhosa. Esplendorosa. Voluptuosa. Você sabe que meus únicos problemas são as calorias, estes carrapatos destruidores de autoestima. Calorias me assombram, meu bem. Eu entro nos lugares e fico olhando o chão para não tropeçar em umas. Porque sim... se tem um bando de gente que perde calorias por aí, alguém vai achar. Ontem na fila do banco ouvi aquela imensa falando toda orgulhosa que perdeu não sei quantas. Então sai daqui, molambenta, sai de perto por que eu não quero achar nada.

— Você está falando comigo, Fu?

Isso foi Sicrana, gritando da cozinha. E sim, o nariz por quem estou desesperada faz parte do rosto de um homem gay. Muito gay. Mas nariz não tem orientação sexual, então não venham me recriminar. Além do que, Fulano e Sicrana, à revelia do desejo de suas famílias, mantêm entre eles uma relação duvidosa que inclui sexo ocasional e troca de dicas de maquiagem na mesma proporção. Sicrana vem de uma família de Referentes Pessoais Genéricos muito tradicionais, uma linhagem nobre de Sicranos e Sicranas puristas. Evidentemente todos detestam a imprecisão da relação que ela tem com Fulano. Eu sei de tudo que acontece nessa casa.

— Não, guria. Falava com um dos vários Fulanos, que compõe este Fulano, que agora vos fala.

E ele ri um pouco da resposta, o sorriso faz o narizinho franzir. Vi só pelo espelho. Pelo espelho também vejo que um momento apoteótico se aproxima: ele vai cortar os pelos do nariz com aquela tesourinha. Corro e me posiciono melhor para o espetáculo, atravesso na pontinha dos pés o tapete e por detrás dos pés da cômoda entro no camarote, de onde posso vê-lo limpar a cavidade nasal com absoluta clareza.

— Esses Fulanos todos estão atrasados, meu bem. Vem tomar café logo, antes que eu saia sem vocês. Ou pior, antes que eu coma seu sonho.

— Meu sonho não! Tudo menos o meu sonho, mocoronga do meu coração.

E o enorme sonho de doce de leite, direto da confeitaria das famílias tira Fulano do espelho. Vai em direção ao doce como o viciado corre na direção da heroína. Ele nunca falou nada parecido, mas eu, com minha sabedoria que data da época dos dinossauros, sei: ele sente tanto prazer comendo sonhos porque eles funcionam como placebo, estratagema para substituir os sonhos de verdade que ele desistiu de sonhar. Por isso que o dono deste narizinho come a bomba de gordura e carboidrato sempre que pode.

— Crana, a gente se conhece desde muito tempo, tanto que a gente nem conta mais para não parecermos velhos, então por favor ajuda essa pessoa que está na sua frente precisando de uma luz: é sério. Você acha que a caloria vai pra onde? Quando você perde uma caneta, por exemplo. Se procurar acha, não é? Na verdade é mais fácil a caneta desaparecer completamente e ir para o vale das canetas perdidas, que as calorias... Elas ficam por aí, empoleiradas, só esperando o próximo culote passar. E aí, nhac! Na ativa de novo. É sim! O que eu estou perdendo aqui, ó, nessa dancinha, vai acabar tudo neste teu braço flácido aí, amor. Fala alguma coisa, mulher!

— Primeiro, larga de ser dramático. É muita cena para pouca serventia. E é claro que eu tenho uma opinião a respeito, você fala sobre estas desgraçadas calorias todo dia, mais de uma vez por dia. Maldita hora que eu te levei naquela nutricionista com pique de animadora de torcida.

— Pois é, falando nela: ela quer que eu vá para a academia fazer exercícios. Academia? Como assim? É um bando de gente junta no mesmo lugar desesperada pra perder caloria. Você olha para o lado, e só pela cara que a pessoa está fazendo, dá para ver as calorias saltando na nossa direção. Vira o pescoço, tem um cara quase se enforcando com um monte de pesos, tudo para ficar parecendo aquele bonequinho de plástico com o corpo todo desproporcional, enfim, fazendo o quê: perdendo calorias para tudo quanto é lado. Gente, alguém acaba achando essas calorias! É por isso que as pessoas vão para a academia, malham, malham e continuam gordas. Perdem as suas, mas acham as dos outros. Venha trocar suas calorias com a gente! Isso sim seria um slogan coerente para divulgar academias.

 A essa altura eu já estava na cozinha com eles, aproveitando também meu café da manhã, bem abusada, bem corajosa. Minhas colegas se recolhem durante o dia. Puro medo, já que nem dormir nós conseguimos. Eu não tenho medo do dia, nem desses dois esquisitos. Além do que, tem esse nariz, esse sim um verdadeiro sonho de consumo. Eu hei de conseguir.

— Caloria não se perde, se gasta, Fulano. Já te falei.

— Ah, gasta. Ridícula. Quando gasta dinheiro você faz o quê? Você dá o seu dinheiro para outra pessoa. Para quem você dá as suas calorias, ahn? Tem umas pessoas que, muito convencidas, juram queimar as ditas. Queima nada. Cadê a fogueira? Isqueiro? Argentino com malabares de querosene? Tem? Queima coisa nenhuma. Caloria a gente perde. E essas criaturas de satanás ficam lá esperando minha bunda passar.

A obsessão com as calorias é só uma das diversas pequenas neuroses diárias de Fulano. Logo começaria o momento “como o ar é sujo”, depois “azul é uma cor horrível, não é?”, e assim segue até voltar para as calorias. Um sujeitinho difícil, chato, talvez doente. Difícil, mas, nunca canso de dizer, dono do nariz mais maravilhoso que eu já vi. Há meses que fico cercando esse nariz, esperando por uma oportunidade de chafurdar naquele oásis. Posso sentir daqui o aroma refinado que emana daquelas suculentas secreções. Mas sei esperar. Minha hora vai chegar. Eu não sou dessas desesperadas que vivem cada minuto como se fosse o último. Esperar é uma arte. Minha espécie não teria durado mais de duzentos milhões de anos se tivesse pressa. Além disso, eu tenho muitos outros proj

— Ui! Credo, que nojo! Meu pai amado.

— O que foi, Sicrana, olhou sua barriga no espelho, foi?

— Pisei numa barata sem querer! Coitada, estraçalhou-se.

— Uma a menos no mundo, amor. Vamos logo para esta maldita reunião de família. Espero que o Beltrano não apareça, aquele falastrão.

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