Dircélia e Rúbia
já completavam quinze anos (ou seriam dezesseis?) trabalhando juntas.
“Trabalhar em secretaria é muito mais difícil do que as pessoas pensam”,
esbravejava Dircélia umas vinte vezes por dia, e Rúbia sempre concordava
movimentando a cabeça. Alternando fases de amor incondicional, e ódio sem
precedentes, as duas só nunca abriam mão de uma coisa, fundamental para o
trabalho correr bem: é preciso manter as fofocas e maledicências em dia. Se
puder ser sobre a vida dos outros funcionários e professores do departamento,
melhor.
- Ontem atendi
aquele esquisito. Ficou um tempão aqui fazendo perguntas, queria saber de todo
o funcionamento da secretaria, só faltou perguntar a cor da minha calcinha, o
falastrão.
- O professor
novo, Dirce? Coitado, está tentando se adaptar.
- Que nada,
menina. É bisbilhoteiro mesmo, do tipo chato. Semana passada estava aí no
balcão, nem lembro com quem, só lembro dele falando bem orgulhoso “eu sou
ateu!”. Que tipo de gente sente orgulho de ser ateu? Só pode ser má pessoa. Eu
detesto ateus. Ateus e comunistas. Tinha que mandar tudo para Cuba! Bom... A
Astrid veio toda feliz, falando que ele é “artista”, que já viajou sei lá para
quantos lugares apresentado Dança. Grande coisa.
- Ah, está
explicado, então.
- Explicado o
que Rúbia?
- Explicado...
ora. Todo artista é veado mesmo, não tem jeito. Bem que eu achei.
- Minha filha,
ali é uma bichona, não é veado. Como assim “bem que eu achei”? Ele tem unhas
duas vezes maiores que as minhas, e que cada semana estão pintadas de uma cor, fora
a cara toda rebocada de maquiagem todo dia e a voz esganiçada. O que você
queria para ter certeza? Que ele viesse de salto alto trabalhar, e entrasse
pela porta cantando “I will survive”?
- Credo Dirce,
eu só não gosto de ser precipitada, só isso.
- Você é
lenta, isso sim que você é. Tem até gente que chama ele de Princesa. Não me
pergunte o motivo, mas outro dia vi a Carmen gritando “Espera, Princesa
Ricardo!”. E ele esperou. Esperou sorrindo, aprovando a forma que foi
anunciado. Quer dizer, está tudo perdido mesmo. Ou é Príncipe Ricardo, Ou
Princesa Ricarda. Simples assim. Fora que com aquela cara de nordestino, com
certeza não tem nada de real na linhagem familiar dele.
- Pensando bem
teve um dia que ele estava falando comigo e parecia que eu falava com uma
mulher. Depois parecia homem. Sei lá. - A observação confusa de Núbia inaugurou
um raro momento de silêncio. Talvez uma reflexão sobre a dubiedade que a figura
de Princesa as vezes inspira.
Mal sabiam as
duas que Princesa Ricardo é um nome que representa mais de quinze anos de
trajetória artística, acadêmica e pessoal de Ricardo Marinelli Martins (esse
era o nome que constava nas listas que elas tinham acesso na secretaria).
Princesa Ricardo foi uma das formas que Ricardo encontrou para já na sua
apresentação, questionar os limites entre homem e mulher, entre feminino e
masculino. Sei disso por conhecê-lo há alguns anos, bem antes de ele se tornar
colega de departamento. Fomos apresentados em uma mesa de bar, durante a festa
de aniversário de uma amiga em comum. Ricardo Marinelli, como me foi
apresentado na ocasião, parecia uma máquina de fazer piada, dar risada e tomar
vodca. Movia-se na conversa com desenvoltura e extroversão notáveis, o que
muitas vezes o tornava irritante e um pouco chato. Às vezes as pessoas
nitidamente queriam um pouco de espaço. Mas Princesa é assim: para o bem para o
mal é intenso, e as vezes é difícil controlar intensidades, não é? Com o tempo
fui descobrindo que essa extroversão e vontade de comunicar ininterruptas, na verdade
são mecanismos de defesa de uma pessoa que está sempre tendo que reaprender a
não se importar com o que os outros dizem. Mas isso Dircélia e Rúbia nunca
veriam em Princesa.
- E ele que não
me venha dar encima do Jurandir. Bicha é um bicho sacana, fica se jogando em
tudo quanto é homem. O Jurandir é meu!
- Dirce!!!!
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