quarta-feira, 16 de novembro de 2016

bocudos


















Aqueles dois, quando nasceram, eram bebês com cara de joelho, assim como todos os outros. Mas muito rapidamente os joelhos deram lugar a caras bem mais específicas.

O primeiro, logo muito criança, tomou um susto quando depois de uma briga uma faca esquisita apareceu um pouco acima da barriga. Sim uma faca saiu de dentro dele, na altura do peito. E depois dela muitas outras apareceram. E ficaram ali, confortável e permanentemente instaladas com suas pontas afiadas intimidando o mundo.

O outro abandonou a cara de joelho ainda mais cedo. Quando percebeu que acompanhava fisicamente o balanço dos patinhos pendurados no móbile acima do berço percebeu também que era só assim que conseguia viver, espiralando.

Simples assim. Complexo assim. Eles nunca souberam direito o que eram, mas quando se perceberam juntos, entenderam alguma coisa. Ao fugir espiralando das facas espalhadas no corpo dele, segundo percebeu que o medo não tinha muito sentido. E ao ver o segundo se movendo tão rápida ágil e amplamente, primeiro se sentiu deslumbrado com tanta possibilidade de mover que ele não tinha. 

Logo perceberam ainda outra presença: Macaco. Na relação com esse outro, os dois aprenderam que são assim: vivem as dores e as delícias de serem esquisitos e específicos.

Bocudos nasceu no colchão, onde vive desde então. Ainda que não tenha uma perna, não fale e nem saia do lugar, Macaco é quem ajuda Bocudos nas tarefas de fazer o tempo, a música e a dança estarem sempre indo.

No colchão a música e a dança nunca acabam, e mesmo com as facas que tem espalhadas por todo lado, o corpo de Bocudos dança muito bem. Aliás ele só se lembra delas, das facas, quando a dança fica mais fora de controle, culpa das músicas mais agitadas que vem de algum lugar que ele não sabe onde.

Na verdade ele gosta delas (das facas) e fica o tempo todo esperando por um novo acontecimento especial em sua vida, quando com certeza ganha uma nova faca ou uma nova boca, que brota delicada e decididamente de dentro pra fora. É o jeitinho dele pra registrar as coisas.

As bocas aparecem com mais frequência que as facas, na verdade. São tantas que ele já perdeu a conta e nem lembra onde estão todas. As vezes, inclusive, muitas delas ficam falando ao mesmo tempo. Nessas horas Bocudos se concentra mais na música, na dança e no macaco, senão fica muito confuso.

Ele lembra bem dos momentos em que cada uma das facas apareceu, menos de quando e como brotou a grande que fica no peito. Dessa só lembra dos dias em que ela dói. Sempre se perguntou o motivo da dor, pois a ponta das suas facas está sempre pra fora do corpo. O que um cabo tem pra fazer doer? Por causa dessa dorzinha essa era a única faca que Bocudos não usava para cortar suas bananas.

Um dia Bocudos tentou abraçar Macaco e numa consequência ridiculamente previsível, as antigas caras de joelho acabaram esfaqueando o amigo peludo. Fim.

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